quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A (minha) verdade sobre a China

Contrariando até mesmo as minhas expectativas, aqui estou eu mais uma vez para encerrar este blog. Desde o último post, já nos despedimos de Hohhot, do TaoBao, dos colegas e amigos e zarpamos para o sul da África do Sul. Já estive em uma temporada no Brasil para tirar meu visto, também, mas esta é outra história.

A história de hoje, a última até que mude de idéia mais uma vez, é um pouco diferente das outras que vocês encontraram neste blog nos últimos 4 anos. Durante todo este tempo, eu tentei - e acho que consegui - contar sobre minha experiência na terra do dragão sem emitir um olhar julgador e tentando tirar alguns preconceitos que vocês, meus guaxinins, pudessem ter. Hoje, porém, mais de dois meses depois do fim deste capítulo da minha vida, acho que é hora de ser sincera. De contar a minha verdade. Devo isso a vocês.

A minha verdade é que a China não é um lugar fácil. A gente brinca dizendo que "o Brasil não é para principiantes", mas o fato, pirilampos, é que a China também não. As diferenças culturais são divididas por abismos que para mim - e muitos dos outros laowai que conheci por lá - foram simplesmente intransponíveis.

A principal barreira, aquela que me causou maiores problemas ao longo destes 4 anos por lá, é a mentalidade dominante da população. Sim, pessoas são diferentes, culturas são diferentes e não necessariamente seguem a mesma evolução, mas isso não afasta o fato de que por muitas e muitas vezes tive a sensação de estar vivendo em algum momento bastante conservador dos anos 1980 enquanto estive lá. A resistência a novas formas de se pensar, o conservadorismo que aceita preconceitos como verdade, os olhares e dedos apontados a cada diferença. O machismo e o racismo amplamente espalhados e sobre os quais não existe um questionamento relevante. A aceitação de que "as coisas são assim, mesmo". Eu sei, minhas libélulas, eu sei. Vocês vão me dizer "Mas, Tati, no Brasil também é assim, olha essa onda conservadora no governo!". Eu sei. A diferença é que, enquanto no Brasil a voz progressista se faz presente - seja pelo ativismo de sofá no Facebook ou por protestos na Paulista -, na China esta voz é um sussuro imaturo sem muita forma ou sem ser ouvido. E se vocês já me dizem "Ah, como é difícil morar no Brasil nestes tempos!", imaginem passar 4 anos em um país onde um bilhão de pessoas repetem senso comum e frases feitas que poderiam ter sido tiradas das páginas de MBLs e Bolsominions da vida.

O segundo ponto entra levemente conectado ao anterior. A China é uma cultura de aparências. Mais do que ser, é necessário mostrar ser. O conceito de "cara" (no sentido de "imagem") é muito forte na cultura chinesa. Nada - nem mesmo a morte - é pior do que a possibilidade de "perder cara" (lose face). E a verdade é que qualquer coisa pode provocar uma perda de imagem. Qualquer pequeno "mico", um erro, um passo em falso ou mesmo coisas que não estavam sob o seu controle podem fazer com que a sua imagem perca valor frente aos outros. Para alguns de vocês, meus pequenos pterodáctilos, talvez este não seja um grande problema, mas para mim foi algo impossível de lidar. Eu não consigo e não quero conseguir ter que viver pisando em ovos o tempo inteiro.

O terceiro e último ponto que usarei aqui diz respeito às relações. Já comentei aqui sobre o guanxi, uma palavra que significa "relacionamento", mas que envolve muito mais do que a gente entende pelo conceito. Guanxi engloba todo um conjunto de regras muito rígidas que devem ser seguidas para se estabelecer qualquer tipo de relação com uma pessoa chinesa. É daí que vem a famosa dificuldade de empresas estrangeiras em estabelecer contatos com empresas de lá. Não é que os chineses sejam muito fechados e só se relacionem entre si (embora isso também aconteça). É que nós, enquanto não-chineses, não conseguimos compreender e aplicar todas as regras que eles esperam que sejam seguidas. 

Como um exemplo de como esse guanxi funciona, vou contar sobre meu antigo emprego. Em nosso primeiro ano, éramos novidade. Eu, a laowai branca, e John, o chinês-não-chinês carismático. Éramos convidados todas as semanas para almoços e jantares com os chefes da faculdade - naqueles encontros regados a baijiu que já mencionei por aqui. Embora não fôssemos de fato obrigados a beber, éramos fortemente incentivados (num estilo "beba para mostrar o seu valor"). Várias vezes tivemos nossas aulas canceladas pelos chefes para que pudéssemos ir a estes almoços. Isso se repetia 2, 3 vezes por semana.

Aí um dia começamos a nos cansar. Recusamos um convite aqui, outro ali, até que passamos a receber menos convites. "Ah, mas não era isso que vocês queriam?". O problema, queridos avestruzes, é que, junto com os convites de jantares, as oportunidades também começaram a desaparecer. Se antes os nossos projetos de aulas e cursos extras para os alunos eram recebidos com entusiasmo, depois eles passaram a se empilhar na gaveta dos chefes que não nos convidavam mais para os eventos. "Ah, mas isso também acontece no Brasil". Quantas vezes vocês foram obrigados a sair para beber com seus chefes duas ou três vezes em uma mesma semana? E quantas vezes estes convites vieram com uma ameaça velada de que vocês não seriam mais levados a sério caso recusassem?

A todos estes pontos, junto também a solidão. Qualquer pessoa que já tenha morado fora por um longo período de tempo sabe a verdade que vocês, que acham que "fora do Brasil é tudo maravilha", escolhem ignorar: não é fácil. A solidão de estar longe da família, dos amigos próximos, da sua própria cultura e língua é real, palpável, demolidora. Se hoje em dia temos internet e Whatsapp e Skype para manter contato, no fim do dia ainda estamos sozinhos. Os amigos seguem suas vidas, a família também, e por mais próximos que nos mantenhamos aquelas poucas semanas a cada ano-e-meio que passamos no Brasil não são suficientes para matar a saudade. As amizades que fazemos fora, principalmente em lugares onde nenhum de nós, expatriados, pretendemos firmar residência, são vazias e rasas. Ninguém quer formar amizades profundas e duradouras com alguém que talvez daqui a um ano esteja em outro continente. É uma forma de auto-proteção. E as amizades com os chineses são, por todos os pontos mencionados acima, difíceis de se consolidar.

"Ah, Tati, então foi tudo horrível e você passou 4 anos mentindo para a gente?". Não, queridos. Nem oito, nem oitenta. Tudo o que disse antes continua sendo verdade. Continuo respeitando a cultura chinesa - embora prefira respeitar a oceanos de distância. Nem digo que não valeu a pena. "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena" é o lema sob o qual procuro sempre viver. Os primeiros dois anos foram de muito aprendizado, muito amadurecimento pessoal e profissional para mim. O terceiro ano se dividiu entre ser um mar de possibilidades e o começo do fim. O último ano foi o único difícil de levar a cabo, pois já não tínhamos vontade ou perspectiva de continuar no país.

A última verdade, que é minha e de outras pessoas que passaram um tempo prolongado por lá, é de que a China faz mal para a cabeça. Nos 4 anos por lá, vi muitos dos meus colegas laowai entrando em depressão, tendo crises de pânico, ansiedade ou simplesmente surtando. Vários destes resolveram, assim como nós, sair do país pelo bem da própria saúde mental em detrimento da estabilidade financeira que tinham por lá. Dois deles entraram em tratamentos psiquiátricos para resolver os problemas causados pela longa estada na China. 

O que eu quero dizer com isso tudo? Apenas, meus amadíssimos guaxinins, que nada na vida é um mar de rosas. A grama do vizinho é sempre mais verde. Vários outros clichês sobre "tá todo mundo mal". Mas, principalmente, que a China, meus amigos… A China também não é para principiantes.

domingo, 7 de maio de 2017

É hora de dar tchau

Me perdoem pelos pesadelos.
Faz mais ou menos 4 anos esse mês que John e eu decidimos dar um pequeno passo e nos jogarmos para outro continente, outro hemisfério, outro oceano e muitos graus abaixo de zero. Corremos contra o tempo para conseguirmos tirar o visto de trabalho e chegar na terra do dragão no início do ano letivo (que, do lado de cá do Equador, começa em setembro). Quatro longos anos em uma cultura tão diferente que eu estaria mentindo se dissesse que me adaptei totalmente. Mesmo quatro anos depois, ainda me pego em momentos de confusão, choque e desespero em atividades tão cotidianas quanto almoçar e jantar.

Mas como nessa vida até uva passa, passou também a hora de darmos tchau e nos aventurarmos mais uma vez em outro lugar. No final de junho estaremos embarcando rumo à Cidade do Cabo, cidade onde John cresceu e apareceu. De volta ao sul do mundo, ao calor, à boa e velha cultura judaico-cristã ocidental. De volta às comidas que gosto - é, esse é um fato que me levou quase quatro anos para admitir: não sou a maior fã de comida chinesa que há no mundo. Um adeus ao dragão, aos banheiros de agachar, ao tofu fedido, aos gritos espantados de "laowai!" - "gringa!" - nas ruas. Com o passar  dos meses fora da China eu com certeza vou começar a me surpreender com coisas que nunca me dei conta que gostava por aqui, mas existem pelo menos três coisinhas das quais já estou me despedidndo porque desde agora já sei que vão fazer falta:

A praticidade (e preços) do AliExpress com a eficiência da Amazon. Morando na China é impossível escapar da tentação de comprar mil itens úteis (ou nem tanto) pela internet, que chegam na sua casa em no máximo uma semana. TaoBao é uma febre tão grande entre todas as camadas da população que eu diria que o sistema de entrega na China é um dos mais eficientes do mundo. Não apenas frete grátis com a maioria dos produtos, mas eles também são entregues muito rápido. São tão populares que em vários condomínios existem caixas de correio com códigos eletrônicos que você recebe por SMS no celular para poder abrir e retirar sua encomenda. A praticidade é tanta que eu poderia fazer um post inteiro só listando coisas que comprei no TaoBao e recebi na porta da minha casa, que vão desde capinhas para celular até estante de livros. Além da enorme variedade e precinhos bacaninhas, o site conta com sistemas de segurança que devolvem imediatamente seu dinheiro caso dê algum problema - nesse tempo todo de compras regulares, só tive duas situações em que precisei ativar esse sistema. Por isso, quando me perguntarem "Do que você mais sente falta na China", eu tenho certeza de que TaoBao vai sempre ser o primeiro item da lista.

Caixa de correio no meu condomínio e close no computador.
O entregador deposita a encomenda e você recebe um código por SMS para abrir a caixa.
- Chá
Ok, ok, eu sei… Eu reclamei tanto de sempre ser servida água quente em restaurantes e nas casas das pessoas por aqui que de repente falar que vou sentir falta de chá pode soar meio esquisito, mas a verdade é que depois de 4 anos acho que sofri do mesmo mal dos gringos que moram aqui e comecei a não apenas tomar chá durante as refeições, mas realmente gostar de fazer isso. Apesar de ainda achar bem chato ter que ficar esperando o chá esfriar - chineses não fazem isso, eles tomam tudo fervendo, devem ter uma espécie de super mucosa na boca à prova de queimaduras ou coisa do tipo -, me acostumei a tomar vários copinhos de chá junto com o almoço ou jantar. Principalmente quando a comida é muito gordurosa - o que é muito comum aqui -, um chazinho ajuda a aliviar a sensação de peso no estômago. Mas não, não precisam se assustar, pirilampinhos: eu ainda não gosto de água quente.

- Segurança
Quando você vir a galinha, nunca mais vai desver.
Se algum dia vocês decidirem se aventurar por este país em formato de galinha choca e resolverem perguntar para um nativo sobre medidas de segurança que deve tomar, com certeza vai ouvir várias dicas como "ah, precisa tomar muito cuidado, tem muito furto nas ruas, tem que ficar sempre atento, não pode acreditar em qualquer um, tem muito golpista e gente querendo se dar bem", e mais uma longa lista de recomendações que parecem querer fazer você achar que as ruas por aqui são na verdade muito perigosas. Perigo existe, realmente. Furtos são extremamente comuns, portanto tomar aquele velho cuidado de sempre prestar atenção aos seus pertences e carregar a bolsa à frente do corpo em grandes aglomerações é muito bem-vindo por aqui. Sempre ouço dos meus colegas europeus sobre como eles já tiveram celular, carteira e até passaporte furtados - os mesmos, ironicamente, que tiram sarro quando vêem os chineses com a mochila pendurada na frente no transporte público -, mas para quem já morou em praticamente qualquer cidade não muito pequena no Brasil a China é level easy. Nunca, em quatro anos morando nestas terras, eu tive medo de caminhar por uma rua deserta ou voltar para casa depois do sol se pôr. Claro que crimes existem, afinal não teriam como não existir em um país com mais de 1 bilhão de pessoas aglomeradas em cidades gigantescas, mas não são nem de perto tão comuns quanto em outros países. Portanto se tem uma coisa que vou sentir saudade é da sensação de não precisar olhar por cima do ombro ao caminhar nas ruas.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Um "Poucosticioso"

"Eu não sou supersticioso, mas eu sou um poucosticioso."
O gato preto cruzou a estrada e passou por debaixo da escada enquanto você quebrava um espelho numa sexta-feira 13. Agora, você pode até me dizer que não tem problema, que não acredita em nada disso e que superstições não passam de baboseira inventada para botar medo nas crianças, mas assim que ninguém estiver olhando vai dar três batidinhas na madeira, só para garantir. Ou de repente não vai fazer nada disso, mas vai usar aquela meia que estava usando da última vez que o São Paulo ganhou a Libertadores porque vai que, né. Ou então vai fazer a prova com aquela caneta que você usou no vestibular e passou na primeira chamada.

Sem a mínima pesquisa ou conhecimento profundo de causa, meus camundongos, eu me arrisco a afirmar que superstições existem em todas as sociedades e culturas do mundo. Levadas mais a sério ou não, sempre existem aquelas histórias que nossas avós nos contavam, sobre como deixar chinelo virado "chama a morte da mãe" ou varrer os pés de alguém é garantia de que a pessoa vai morrer solteira.

Na China, claramente, não é diferente. É só dar uma passeada pelos corredores de um prédio que você verá várias portas (a maioria) decoradas com papéis vermelhos com mensagens de sucesso e prosperidade. No Ano Novo chinês eles comem dumplings e soltam (muitos, muitos, mas muitos mesmo) fogos de artifício para espantar a má sorte do ano anterior. Superstições são um assunto que sempre me interessou, e já há alguns semestres eu pedi para meus alunos discutirem e me contarem algumas das mais comuns. Aqui vão as que achei mais curiosas:


1. NÃO ASSINE EM CANETA VERMELHA

Na China medieval, sentenças de morte eram escritas em tinta vermelha. Hoje em dia, a superstição é clara: não assine seu nome em vermelho ou você vai morrer.


2. NÃO DÊ RELÓGIOS DE PRESENTE


Relógio de bolso, de pulso, de parede ou digital. Dar um relógio para alguém significa "O seu tempo está contado". Ou seja, se você der um relógio para alguém, essa pessoa vai morrer.


3. NÃO DÊ SAPATOS À PESSOA AMADA


Talvez tudo o que a pessoa estivesse esperando era um bom par de sapatos para correr para bem longe de você. Portanto, se você der sapatos ao marido, namorado ou crush, vocês vão se separar.


4. NÃO DIVIDA UMA PÊRA



Pêras são porções individuais e jamais devem ser divididas com amigos. Se seu amigo pedir um pedaço, invente uma desculpa e não divida. Se duas pessoas comerem a mesma pêra, elas vão ter uma briga muito séria.


5. NÃO PISE EM TAMPA DE BUEIRO


Bom, essa pelo menos faz um certo sentido, mas se você pisar em tampa de bueiro, você vai morrer.


6. NÃO VIRE UM PEIXE


Não, esse não é um aviso para você não se transformar acidentalmente em um peixe, guaxinim (quantos de vocês pensaram isso?). Quando você estiver comendo aquele belo peixe assado e um dos lados estiver terminando, em hipótese alguma vire o peixe para o outro lado. Se você fizer isso, todas as pessoas na mesa terão azar. O azar é multiplicado se isso acontecer num almoço de casamento.


7. NÃO DEIXE OS PALITINHOS DE PÉ


Essa não só é superstição, mas também regra de etiqueta. Você está tendo uma bela refeição e resolve descansar os palitinhos (kuaizi, ou hashi em japonês) na tigela de arroz enquanto toma um gole de chá. Sempre deixe os palitinhos deitados sobre a borda da tigela (ou no apoio de palitos que restaurantes mais chiques oferecem). Nunca, jamais enterre os palitinhos na perpendicular dentro do arroz. Além de extremamente rude, isso ainda chama a morte, pois é dessa forma que as oferendas de comidas são deixadas no cemitério.


8. NÃO BATA COM OS PALITINHOS NA TIGELA


Essa é a forma como mendigos costumam chamar a atenção nas ruas quando pedem esmolas, então se você bater com os palitinhos na sua tigela você vai perder dinheiro.


9. NÃO SE OLHE NO ESPELHO DE MADRUGADA


Os alunos divergiram sobre o horário exato em que a superstição passa a valer. Alguns dizem que vale para a madrugada inteira, outros que é só entre a meia-noite e a uma da manhã, mas todos concordam que se você se olhar num espelho durante a madrugada, você vai ver um fantasma atrás de você. 


10. NÃO VARRA A CASA NO ANO NOVO


Na véspera do Ano Novo chinês, que é chamado de Festival da Primavera e dura 15 dias, os chineses costumam fazer uma grande faxina. Porém, assim que o Festival começa, você não deve varrer o chão da sua casa, e se o fizer não pode jogar a sujeira fora até o fim do Festival.


Eu não acredito em superstições. É claro que eu não acredito em superstições. Mas deixa eu correr ali para desvirar aquele chinelo. Porque vai que, né.

sábado, 31 de dezembro de 2016

Agachando como os chineses

Um dos posts de maior sucesso nesse blog é o Elogio à Privada, onde eu contei como os banheiros públicos aqui raramente contam com meu querido e saudoso vaso sanitário, que é substituído pelo que é chamado de squat toilet em inglês (ou, traduzindo literalmente, "privada de agachar").

Aprendendo a usar um squat toilet
Agora eu pergunto: quantos de vocês, pequenos gafanhotos, conseguem se agachar sem problemas? Eu me lembro de quando era criança, lá pela segunda ou terceira série, e eu e minha melhor-amiga-para-sempre-até-brigarmos-na-quinta-série costumávamos passar o recreio juntas em um canto do pátio. Ela se sentava num banquinho baixinho e eu, para podermos conversar mais confortavelmente, me agachava em frente a ela e assim ficava por todos os 10 ou 15 minutos do intervalo. Lembro de várias vezes ela ter me perguntado como eu conseguia ficar agachada por tanto tempo, e hoje, uns bons muitos anos depois, eu me pergunto o mesmo: Como diabos eu conseguia? 

"De boas aqui agachado, batendo um papo com os amigos"

Agora, nos últimos anos em que poderei escrever um número "2" no começo da minha idade e morando na China, uma das tarefas mais difíceis é conseguir me equilibrar agachada quando tenho que usar um banheiro fora de casa. Abaixa as calças, agacha e começa um segura-peão em que torço para conseguir ficar equilibrada por tempo suficiente para terminar o serviço. Depois de 3 anos por aqui, está mesmo um tiquinho mais fácil, mas a concentração tem que ser firme para não terminar em acidentes (confesso que um dos meus maiores medos é cair de bunda em um dos limpíssimos - só que não - squat toilets). Tentem em casa. Vocês conseguiriam?

Pois chineses conseguem. Não só agacham para 
Tem posição mais confortável pra checar o
Whatsapp do crush?
se aliviar de necessidades rápidas - ou nem tanto, a contar pela quantidade de vezes que tive que esperar apertada para usar uma cabine de banheiro público em que a pessoa estava assistindo o capítulo de ontem da novela enquanto cuidava de seus afazeres sanitários -, mas também para praticamente tudo na vida. No ponto de ônibus, lendo um livro, esperando a amiga terminar de fazer uma compra ou só mesmo matando tempo, é extremamente comum encontrar chineses simplesmente agachados por um longo tempo pelas ruas do país. Essa é uma prática tão comum que em inglês existe até o termo chinese squat para se referir à posição.

Embora eles contem com um segredo - note pelas fotos que a sola dos dois pés estão totalmente apoiadas no chão, enquanto a gente geralmente agacha nas pontas dos pés -, eu ainda não consegui entender completamente como eles conseguem ficar assim por tanto tempo sem perder o equilíbrio ou o movimento das pernas (só de pensar nisso as minhas já ficam dormentes). Experimentem essa posição, pequenos sagüis. Seria uma posição que vocês escolheriam ficar para passar o tempo?

É de pequeno que se aprende.

Mas por quê, Tati? - vocês gostam de querer saber os porquês, comos e ondes, hem? A verdade, minhas siriemas, é que eu não faço idéia. Provavelmente pelo mesmo motivo pelo qual nós cruzamos as pernas e eles não (apesar disso estar mudando pela influência ocidental, eles não costumam cruzar as pernas ao sentar como nós fazemos): hábito. Costume. Uma vida inteira fazendo isso. Como vocês podem ver pelas fotos (nenhuma delas fui eu que tirei, por sinal, mas são fiéis representações do que eu vejo por aqui), é um hábito introduzido desde muito cedo, quando as crianças ainda estão de fraldas (ou não estão… um dia eu falo sobre chineses e o não-uso de fraldas…). Anos e anos de treino usando essa posição para descansar devem ter fortalecido os músculos das pernas de uma forma que eles consigam simplesmente agachar como se fosse - e para eles é - a coisa mais normal do mundo.

Enquanto eu procurava fotos para ilustrar esse post, me deparei com várias pessoas afirmando que essa é uma posição saudável e que faz muito bem para o corpo de uma forma geral. Como sempre, eu procuro me manter cética com relação aos milagres da sabedoria milenar chinesa, mas volta e meia aparecem coisas que fazem, talvez, um certo sentido. E aí, meus guaxinins? O que vocês acham?

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

5 Curiosidades Sobre a China

Eu sei, eu sei… Foram muitos e muitos meses sem um post por aqui. Me desculpem.
A verdade é que já se vão 3 anos e meio de China, e após este tempo todo fica cada vez mais difícil para eu perceber coisas que poderiam ser interessantes de dividir aqui, já que tudo se torna parte da rotina. 
Mas, enfim. Resolvi fazer um pequeno apanhado de curiosidades sobre a China que não valem um post à parte, mas que vocês provavelmente não sabem.

Vamos às curiosidades:

1. Chineses bebem água quente

Pra quem me conhece esse não deve ser um fato desconhecido e eu já mencionei aqui uma vez ou outra, mas como é um dos fatos que mais estranhei quando cheguei por aqui, vamos falar sobre isso.
Sim, chineses bebem água quente. Não, não apenas chá. Água, mesmo, da mesma forma que a gente bebe fria ou gelada. Eles bebem quente.

Pra começar, chineses costumam beber bastante água. Eles estão sempre carregando uma garrafinha pra lá e pra cá, e bebericando aqui e ali. Nos restaurantes é comum oferecerem uma jarra com água (às vezes com uma rodela de limão) para a gente beber, e sempre que você visita alguém eles já vêm com um copo de água (quando não é chá). Só que essa água SEMPRE vai ser água quente. Não morna, não "sem gelo". QUEN-TE.

Água fria e gelada? Haha… Não: morna ou quente.
"Mas por quê?" - você me pergunta. Acredite, esta é uma pergunta que eu cansei de repetir quando cheguei aqui, e a resposta sempre foi a mesma: "Porque faz bem pra saúde".

Agora, antes que você venha nos comentários dizer que "Ah, puxa, chineses são tão sábios e saudáveis, deve mesmo ser melhor", eu sugiro que você leia meu post sobre a romantização da China e pense melhor.

Eles acreditam piamente não apenas que água quente faz bem para a saúde, mas que água fria faz mal. As gerações mais antigas inclusive acreditam que beber água fria faz uma mulher se tornar infértil (sim, já ouvi da avó do John que eu deveria parar de beber água fria ou não vou poder ter filhos…). Mesmo médicos costumam indicar água quente para tratar praticamente qualquer coisa, de dor de barriga a unha encravada. E, se você por acaso for pego bebendo água fria ou - o horror, o horror - gelada, vai ter que ouvir "você deveria beber água quente, água fria faz mal", seja de pessoas mais velhas ou mais jovens.

Certo. Mas isso não responde à pergunta. Por que diabos eles só bebem água quente? 

A resposta mais coerente que recebi até agora foi a de que essa foi a forma que os chineses sempre usaram para esterilizar a água. Diferentemente do mundo ocidental, que desenvolveu filtros para esse fim, por aqui eles continuaram fervendo. Beber água sem ferver ou filtrar faria mesmo mal à saúde, então se espalhou esse mito de que água fria faz mal. Faz sentido.

"Mas espera, eles bebem a água recém fervida?" - isso me leva ao próximo fato desconhecido sobre a China:

2. Chineses bebem e comem coisas MUITO quentes

Imagine a cena: você vai a um restaurante e pede uma sopa. A sopa chega, naturalmente recém saída do fogo e portanto extremamente quente. Você espera a sopa esfriar (ou até dá uma assopradinha para acelerar o processo), certo?

Pois é. Chineses não fazem isso. A sopa vem, eles trazem a tigela à boca e começam a beber (eles
bebem sopa, não comem com colher como a gente). A mesma coisa com macarrão, chá ou a água quente que mencionei acima.

Como eles conseguem? Bom, eu imagino que você já tenha visto ou ouvido dizer em algum lugar que chineses fazem barulho quando bebem algo. Aquele mesmo barulho de sucção que é considerado muito deseducado no ocidente, sabe? Pois então, esta é a razão escondida. Fazendo esse barulho, eles evitam queimar a boca enquanto comem alimentos super quentes.

A única pergunta que sobra pra mim ainda é como eles conseguem fazer isso sem engasgar, já que eu nunca consegui.

3. Endereços de e-mail chineses são números

Na primeira vez em que pedi o e-mail de um aluno, minha reação imediata foi dizer "Não, não. E-mail, não telefone". A maioria absoluta dos chineses que usam algum serviço de e-mail por aqui não possuem um endereço personalizado como nós fazemos. Eles utilizam o próprio sistema, que cria um número único para cada um (quem lembra do ICQ levanta a mão).

Para começar, os chineses não têm muito costume de usar e-mail. Na faculdade em que trabalhamos, mesmo, existe um e-mail oficial para o departamento inteiro, para o qual todos têm a senha, e ao invés de enviar e-mails uns para os outros, quem quiser algum documento só precisa pedir para alguém salvar nessa conta, acessar e baixar. Funciona quase como um serviço de dropbox ou coisa parecida. Já para se comunicar com amigos, eles costumam usar o WeChat (aplicativo de celular tipo Whatsapp), o Weibo (rede social chinesa) ou o QQ (tipo MSN). Esse último também oferece o serviço de e-mails, e é o mais utilizado por aqui.

Portanto, se algum dia você pedir o email de um chinês, não se espante quando ele começar "2…5…4…6…3…8…2…1…5…9…@qq.com". É assim mesmo que funciona por aqui.

4. Amizades são relações extremamente importantes para chineses

Já faz muito tempo que eu quero fazer um post sobre guanxi. Se você jogar essa palavra no Google Translator, ele vai dizer que significa "relacionamento", mas a verdade é que o conceito de guanxi é muito mais complexo do que isso. 

Parte do conceito de guanxi inclui as amizades feitas na escola, na faculdade e no trabalho. Já comentei antes que aqui praticamente todos os alunos de faculdade e alguns de Ensino Médio e Fundamental moram em dormitórios na escola. Pois bem, na maioria das faculdades esses dormitórios são divididos em muitas pessoas. Na faculdade em que dou aula, por exemplo, são entre 6 e 8 pessoas por dormitório (e não, esses dormitórios não são grandes).

As amizades que eles formam são ligações extremamente fortes, quase tão fortes quanto família. Eles são em geral muito leais a seus amigos, e é comum pedirem e fazerem favores e dinheiro emprestado a amigos que nem são tão próximos assim. Em todas as vezes que perguntei a meus alunos se eles denunciariam um colega de quarto que fosse muito barulhento e desrespeitoso com os demais, a resposta foi sempre a mesma: "Não, professora, porque nós somos família".

5. Gringos têm "tudo a mesma cara" para chineses

Sabe aquela coisa que a gente cansa de ouvir e falar, de que "chineses têm tudo a mesma cara"? Então, eu tenho uma surpresinha pra você: Pra eles, nós também temos "tudo a mesma cara". Claro que temos algumas diferenças: cor de olho, cor de cabelo, cor da pele. Mas o "gringo padrão" aqui
Mas não é que é tudo a mesma cara, mesmo?
(cabelo, olhos e pele claros, perfil no qual me encaixo) para eles é tudo igual.

Isso já me rendeu algumas histórias engraçadas, como: 

- Encontrando pela primeira vez o dono de uma escola onde alguns amigos dão aula, ele me cumprimenta: "Oi, Judy!". Eu, sem muita reação, só respondo um "oi" meio sem certeza. Meus amigos caem na risada. "Não, Frank, essa não é a Judy!". Ele "Não????". Me olha novamente, dessa vez com bastante atenção. "É sim, não é???" 

- Uma aluna da faculdade para quem dei aula por quase 2 anos seguidos me reencontra numa aula extra depois de alguns meses sem me ver. Ela passa por mim "Oi, Tati". Pára na minha frente e se aproxima do meu rosto, com cara de dúvida. Murmurando em chinês consigo mesma, a poucos centímetros do meu rosto: "Não, espera. Essa não é a Tati. Não, é sim. Não, não é a Tati. É a Tati. Não, não é.". Eu caí na risada e nunca mais deixei ela esquecer desse dia.

Então, da próxima vez que você disser coisas absurdas como "chineses têm tudo a mesma cara", lembre-se de que, pra eles, nós também temos.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Antes de subir ao altar

"Professora, é verdade que em países ocidentais um homem não precisa ter uma casa para poder se casar?"
Foi com essa pergunta que uma das minhas alunas particulares não me surpreendeu ao final de uma aula em que eu tinha passado os últimos 20 minutos explicando conceitos completamente alienígenas para ela, tais como "morar junto sem se casar" e "mães/pais solteiros". 

A verdade é que até menos de dois anos atrás, a pergunta teria me deixado tão chocada quanto ela ficou ao ouvir minha resposta. Agora, conhecendo melhor os hábitos chineses, eu simplesmente dei a mesma risada que a gente dá quando uma criança pergunta se chove porque os anjos estão lavando o céu ou se as pessoas na TV podem ver a gente do outro lado. Mas como vocês, leitores queridos, devem estar se perguntando o que motivou a dúvida da minha aluna, vou explicar como funciona a vida amorosa dos chineses.

Primeiramente, eles não costumam namorar muito jovens. Vários alunos com quem conversei tiveram namorados/as no Ensino Médio ou até no fim do Fundamental, mas em todos os casos o namoro era completamente escondido dos pais. Na faculdade começa a ser mais aceitável ter um relacionamento, mas eles só chegam a apresentar o/a amado/a para a família depois de muitos anos juntos.

Aí eles terminam a faculdade, e a verdadeira corrida começa. A idade ideal para se casar - de acordo com os pais - é em torno dos 27 anos, o que significa que ao terminar a faculdade com 24 você deve já estar em ou imediatamente engatar um namoro, para dar tempo de se conhecerem o suficiente até o casamento.

"Alugue um namorado para levar para casa no feriado - por RMB 9999"
"Cadê a namorada?", os pais perguntam. "Você está ficando velha, precisa namorar!", eles dizem. Insistem tanto, e tanto, que nos sites de compras pela internet - como o Mercado Livre do Brasil - existe um negócio bastante lucrativo que é chamado de "namorado/a de aluguel". Por preços módicos (ou nem tanto), você pode alugar uma pessoa para viajar com você para a casa dos pais no Ano Novo Chinês e dizer para todo mundo que vocês estão juntos.


Conforme você vai chegando perto dos 30 e ainda não encontrou alguém, vai aumentando o risco da sua família interferir. Encontros às escuras marcados pelos pais, assim como "mercados de filhos" - lugares onde os pais podem colocar um anúncio, bastante direto, sobre seus filhos encalhados - têm uma grande chance de acontecerem. E, se você for uma mulher solteira com mais de 27 anos, vai ter que agüentar ser chamada de "sobra" e perguntas vindas de completos estranhos sobre o que tem de errado com você para ainda não ser casada (e não, isso não acontece pelas costas da mulher, nem entre sussurros; é em alto e bom som, na frente dela e para ela).

"Mulher, 28 anos, 1,55m, 45kg. Sabe cozinhar."
Só que calma lá, pequenos pirilampos. Não é só você (ou sua família) arrumar a primeira pessoa que passar na frente e vocês estarão em paz para seguir suas vidas juntos. Quando o/a jovem chinês/a finalmente encontra sua cara-metade, o jogo passa para a próxima fase: Será que ele/ela é bom o suficiente?

Mas o que é ser bom o suficiente, para uma família chinesa? Sim, é claro que ser uma pessoa honesta, trabalhadora e que trate bem seu/sua filhinho/a é importante, mas não é tudo.
Primeiro passo: ter um trabalho estável e que dê dinheiro. É inconcebível para os chineses um casal subir ao altar sem que ambos tenham um bom emprego. Também é extremamente importante que o futuro marido ganhe um salário consideravelmente maior do que a futura esposa, além de não ser bem-visto que um homem se case com uma mulher com mais formação acadêmica do que ele - obrigada, patriarcado
Segundo passo: conferir se as famílias têm mais ou menos as mesmas condições financeiras. Não é bem visto aqui uma pessoa se casar com alguém de classe social muito abaixo ou acima da sua própria família (sim, eu sei, "mas, Tati, não é país comunista, como assim tem classes sociais?"... oh, darling…). Também é importante que as famílias venham de origens semelhantes, como por exemplo que sejam ambas do campo ou da cidade.
Terceiro passo: ter uma casa mobiliada e um carro na garagem. Eis aí a origem da pergunta que me inspirou a escrever este post. É tradicional que, antes de se casarem, a família do noivo dê uma casa para o futuro casal. À família da noiva cabe mobiliar a casa e/ou dar um carro, dependendo das condições financeiras da família. 

"E onde fica o amor?", vocês podem me perguntar. Eu mesma, há dois anos e ainda em choque cultural, fiz esta pergunta aos meus alunos. "Amor, professora? Ah, é importante… Mas também, se não amar quando casar, aprende a amar depois." Foi assim, de forma bastante prática e sem rodeios, que eles me responderam. E é assim, extremamente pragmáticos, que os chineses seguem suas vidas profissionais, sociais, amorosas. Se é melhor ou se é pior, não cabe a mim (e nem a vocês, meus queridos flamingos) julgar. Se posso tirar disso pelo menos um ponto positivo, é que em minha visão o modo chinês de ser me soa bem menos mascarado e desonesto do que o que estamos acostumados. Mas isso talvez seja assunto para outro post...

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Meus queridos guaxinins, fui apresentada recentemente à nova plataforma de blogagem Medium. Gostei muito do formato e do visual, então a partir de hoje estarei migrando para lá. Ainda atualizarei este blog, já que por lá não irei me limitar apenas aos relatos sobre a China, mas para quem quiser me seguir na outra plataforma, minha url é http://medium.com/@naosouclarice

terça-feira, 28 de abril de 2015

As Histórias dos meus Alunos

Aviso: este não é um post feliz.

Ser professora de inglês estrangeira em uma faculdade na China traz com certeza muitas vantagens. Os alunos nos idolatram, os professores chineses querem ser nossos amigos, nosso salário é mais alto e, como na maior parte das vezes somos contratados apenas para aulas orais, não temos pilhas de lição de casa e provas para corrigir. Uma das partes mais interessantes - e uso aqui a palavra "interessante" porque não sei decidir se é uma vantagem ou desvantagem - é que os alunos se sentem bastante à vontade para contar tudo para nós.

Sendo professora de inglês oral, uma das formas de exame é através de uma sessão individual de perguntas e respostas com os alunos. Eu tento variar as questões a cada semestre, porém devido ao nível de inglês dos alunos - que, na melhor das hipóteses, não é excelente -, não tenho muito como fugir de assuntos que sejam familiares a eles. Portanto muitas das perguntas acabam sendo "Conte-me sobre a sua família" ou "Fale sobre a melhor ou pior lembrança da sua infância". Somando isso à falta de filtro social bastante comum nessa geração de chineses, as histórias que ouço são sempre surpreendentes.

Há as histórias engraçadas: uma aluna que, na infância, passou horas procurando com a avó algo que estava o tempo inteiro na mão dela; outra que furtou uma batata doce da vendinha da esquina com os coleguinhas de escola, mas ficou com tanto medo da mãe descobrir que escondeu a batata e nunca mais achou.

Há também as histórias sem noção, como a da aluna que me contou que a melhor lembrança da infância foi quando ela deu uma salsicha ao cachorrinho que o pai tinha dado para ela e o filhote morreu (disse ela que foi uma boa memória porque fez com que ela aprendesse a não dar salsicha a cachorrinhos), ou a outra cuja melhor lembrança foi quando ela foi atropelada e quebrou a perna, pois os pais não saíam de perto dela depois disso.

Mas, como não poderia deixar de ser, há também as histórias tristes.

Antes de continuar, queria explicar que dou aula em uma faculdade "nível 3", o que na China significa uma faculdade para quem não consegue as melhores notas no "Enem" daqui. Muitos dos nossos alunos são gente que não estudou o suficiente no colegial, ou que não deu muita bola, mas muitos outros também são pessoas que não vieram de famílias com dinheiro suficiente para enviá-los a bons colégios. Muitos deles cresceram na zona rural, com pais trabalhadores das lavouras ou fábricas.

E é destes que geralmente ouço as histórias que me deixam com um nó na garganta e que resolvi compartilhar. Nos últimos 4 semestres foram muitas histórias, mas algumas delas ainda me marcam.

Ainda no meu primeiro semestre aqui, tive muitos alunos chorando durante o exame. Se arrependem de não terem estudado melhor no colegial, quando os pais deixavam de comer para mandá-los à escola. Choraram porque tiveram ciúme do irmão mais velho que teve que deixar a escola para trabalhar e sustentar a família. Uma, porque a mãe faleceu ano passado devido a um câncer e ela estava ocupada demais estudando para passar os últimos meses ao seu lado.

Há as incontáveis meninas - dou aula no curso de licenciatura em inglês, portanto 90% dos alunos são meninas - com pais insistindo para que elas se casem, pois mulher não precisa ter carreira. As outras que queriam ser médicas ou engenheiras, mas acabaram neste curso porque os pais disseram que "ser professora é uma boa carreira para uma mulher".

Muitos, incontáveis, choraram porque os pais, tendo que trabalhar, os deixaram para crescer com os avós. Sentem-se abandonados, mesmo sabendo e admitindo - com culpa nos olhos - que os pais trabalham tanto para que eles tenham uma vida melhor. Muitos que foram enviados para colégios internos em cidades distantes desde o primário, e que desde que conseguem se lembrar só vêem a família a cada seis meses.

Semana passada ouvi de pelo menos 4 alunas que seus pais são alcoólatras. Uma delas, sorrindo, me disse que o pai teve que parar de beber por causa de uma doença. As outras, desviando com seus olhos marejados o meu olhar, sentem-se culpadas por não conseguirem fazer seus pais pararem de beber. Foram vários os que me disseram ter que apartar brigas entre os pais, com uma inclusive tendo chamado a polícia para tanto quando ainda tinha 8 anos de idade.

Mas a pior história ouvi ontem, de uma aluna mirradinha, que visivelmente não foi bem-nutrida na infância. Me contou, sem lágrimas nos olhos e até mesmo com um sorriso de quem já contou essa história vezes suficientes para que as palavras venham sem machucar, que sua mãe veio um dia dizer que estava grávida. Ela, então com 14 anos e uma irmãzinha de 7, se revoltou contra os pais. Não por ciúme, ela disse, mas porque já há tempos eles mal tinham o que comer, e onde já se viu os pais arranjarem mais uma criança? Após dias sem falar com os pais, a mãe finalmente conta que, caso o bebê que estava esperando fosse mais uma menina, eles a dariam para adoção. Minha aluna, então, diz que torceu com todas as forças para que fosse uma menina, porque sabia que eles não tinham condição de alimentar mais uma boca. Mas, disse ela, obviamente nasceu um menino e os pais resolveram criá-lo. Ela não se arrepende de ter torcido contra, disse, mas agora ela ama o irmão de 6 anos e sabe que tem responsabilidade, como irmã mais velha, de ter um bom emprego e conseguir dinheiro o suficiente para criá-lo.

Aí sou eu, professora, estrangeira, aquela em quem os alunos confiam e nem eu sei dizer por quê, sem saber o que fazer. Parte de mim quer abraçar aqueles alunos e dizer que vai ficar tudo bem, mas a outra parte sabe que se eu fizer isso com todos os que tiverem uma história triste para me contar, não vou ter tempo suficiente para terminar de realizar os exames com todos. E também sei que eles sabem que não, não vai ficar tudo bem.

Para quem chegou até o final e agora está com o mesmo nó na garganta que eu tenho na sala de exames, eu avisei que este não seria um post feliz.