quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A (minha) verdade sobre a China

Contrariando até mesmo as minhas expectativas, aqui estou eu mais uma vez para encerrar este blog. Desde o último post, já nos despedimos de Hohhot, do TaoBao, dos colegas e amigos e zarpamos para o sul da África do Sul. Já estive em uma temporada no Brasil para tirar meu visto, também, mas esta é outra história.

A história de hoje, a última até que mude de idéia mais uma vez, é um pouco diferente das outras que vocês encontraram neste blog nos últimos 4 anos. Durante todo este tempo, eu tentei - e acho que consegui - contar sobre minha experiência na terra do dragão sem emitir um olhar julgador e tentando tirar alguns preconceitos que vocês, meus guaxinins, pudessem ter. Hoje, porém, mais de dois meses depois do fim deste capítulo da minha vida, acho que é hora de ser sincera. De contar a minha verdade. Devo isso a vocês.

A minha verdade é que a China não é um lugar fácil. A gente brinca dizendo que "o Brasil não é para principiantes", mas o fato, pirilampos, é que a China também não. As diferenças culturais são divididas por abismos que para mim - e muitos dos outros laowai que conheci por lá - foram simplesmente intransponíveis.

A principal barreira, aquela que me causou maiores problemas ao longo destes 4 anos por lá, é a mentalidade dominante da população. Sim, pessoas são diferentes, culturas são diferentes e não necessariamente seguem a mesma evolução, mas isso não afasta o fato de que por muitas e muitas vezes tive a sensação de estar vivendo em algum momento bastante conservador dos anos 1980 enquanto estive lá. A resistência a novas formas de se pensar, o conservadorismo que aceita preconceitos como verdade, os olhares e dedos apontados a cada diferença. O machismo e o racismo amplamente espalhados e sobre os quais não existe um questionamento relevante. A aceitação de que "as coisas são assim, mesmo". Eu sei, minhas libélulas, eu sei. Vocês vão me dizer "Mas, Tati, no Brasil também é assim, olha essa onda conservadora no governo!". Eu sei. A diferença é que, enquanto no Brasil a voz progressista se faz presente - seja pelo ativismo de sofá no Facebook ou por protestos na Paulista -, na China esta voz é um sussuro imaturo sem muita forma ou sem ser ouvido. E se vocês já me dizem "Ah, como é difícil morar no Brasil nestes tempos!", imaginem passar 4 anos em um país onde um bilhão de pessoas repetem senso comum e frases feitas que poderiam ter sido tiradas das páginas de MBLs e Bolsominions da vida.

O segundo ponto entra levemente conectado ao anterior. A China é uma cultura de aparências. Mais do que ser, é necessário mostrar ser. O conceito de "cara" (no sentido de "imagem") é muito forte na cultura chinesa. Nada - nem mesmo a morte - é pior do que a possibilidade de "perder cara" (lose face). E a verdade é que qualquer coisa pode provocar uma perda de imagem. Qualquer pequeno "mico", um erro, um passo em falso ou mesmo coisas que não estavam sob o seu controle podem fazer com que a sua imagem perca valor frente aos outros. Para alguns de vocês, meus pequenos pterodáctilos, talvez este não seja um grande problema, mas para mim foi algo impossível de lidar. Eu não consigo e não quero conseguir ter que viver pisando em ovos o tempo inteiro.

O terceiro e último ponto que usarei aqui diz respeito às relações. Já comentei aqui sobre o guanxi, uma palavra que significa "relacionamento", mas que envolve muito mais do que a gente entende pelo conceito. Guanxi engloba todo um conjunto de regras muito rígidas que devem ser seguidas para se estabelecer qualquer tipo de relação com uma pessoa chinesa. É daí que vem a famosa dificuldade de empresas estrangeiras em estabelecer contatos com empresas de lá. Não é que os chineses sejam muito fechados e só se relacionem entre si (embora isso também aconteça). É que nós, enquanto não-chineses, não conseguimos compreender e aplicar todas as regras que eles esperam que sejam seguidas. 

Como um exemplo de como esse guanxi funciona, vou contar sobre meu antigo emprego. Em nosso primeiro ano, éramos novidade. Eu, a laowai branca, e John, o chinês-não-chinês carismático. Éramos convidados todas as semanas para almoços e jantares com os chefes da faculdade - naqueles encontros regados a baijiu que já mencionei por aqui. Embora não fôssemos de fato obrigados a beber, éramos fortemente incentivados (num estilo "beba para mostrar o seu valor"). Várias vezes tivemos nossas aulas canceladas pelos chefes para que pudéssemos ir a estes almoços. Isso se repetia 2, 3 vezes por semana.

Aí um dia começamos a nos cansar. Recusamos um convite aqui, outro ali, até que passamos a receber menos convites. "Ah, mas não era isso que vocês queriam?". O problema, queridos avestruzes, é que, junto com os convites de jantares, as oportunidades também começaram a desaparecer. Se antes os nossos projetos de aulas e cursos extras para os alunos eram recebidos com entusiasmo, depois eles passaram a se empilhar na gaveta dos chefes que não nos convidavam mais para os eventos. "Ah, mas isso também acontece no Brasil". Quantas vezes vocês foram obrigados a sair para beber com seus chefes duas ou três vezes em uma mesma semana? E quantas vezes estes convites vieram com uma ameaça velada de que vocês não seriam mais levados a sério caso recusassem?

A todos estes pontos, junto também a solidão. Qualquer pessoa que já tenha morado fora por um longo período de tempo sabe a verdade que vocês, que acham que "fora do Brasil é tudo maravilha", escolhem ignorar: não é fácil. A solidão de estar longe da família, dos amigos próximos, da sua própria cultura e língua é real, palpável, demolidora. Se hoje em dia temos internet e Whatsapp e Skype para manter contato, no fim do dia ainda estamos sozinhos. Os amigos seguem suas vidas, a família também, e por mais próximos que nos mantenhamos aquelas poucas semanas a cada ano-e-meio que passamos no Brasil não são suficientes para matar a saudade. As amizades que fazemos fora, principalmente em lugares onde nenhum de nós, expatriados, pretendemos firmar residência, são vazias e rasas. Ninguém quer formar amizades profundas e duradouras com alguém que talvez daqui a um ano esteja em outro continente. É uma forma de auto-proteção. E as amizades com os chineses são, por todos os pontos mencionados acima, difíceis de se consolidar.

"Ah, Tati, então foi tudo horrível e você passou 4 anos mentindo para a gente?". Não, queridos. Nem oito, nem oitenta. Tudo o que disse antes continua sendo verdade. Continuo respeitando a cultura chinesa - embora prefira respeitar a oceanos de distância. Nem digo que não valeu a pena. "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena" é o lema sob o qual procuro sempre viver. Os primeiros dois anos foram de muito aprendizado, muito amadurecimento pessoal e profissional para mim. O terceiro ano se dividiu entre ser um mar de possibilidades e o começo do fim. O último ano foi o único difícil de levar a cabo, pois já não tínhamos vontade ou perspectiva de continuar no país.

A última verdade, que é minha e de outras pessoas que passaram um tempo prolongado por lá, é de que a China faz mal para a cabeça. Nos 4 anos por lá, vi muitos dos meus colegas laowai entrando em depressão, tendo crises de pânico, ansiedade ou simplesmente surtando. Vários destes resolveram, assim como nós, sair do país pelo bem da própria saúde mental em detrimento da estabilidade financeira que tinham por lá. Dois deles entraram em tratamentos psiquiátricos para resolver os problemas causados pela longa estada na China. 

O que eu quero dizer com isso tudo? Apenas, meus amadíssimos guaxinins, que nada na vida é um mar de rosas. A grama do vizinho é sempre mais verde. Vários outros clichês sobre "tá todo mundo mal". Mas, principalmente, que a China, meus amigos… A China também não é para principiantes.